quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Baudelaire


Estava lendo Charles Baudelaire (As Flores do Mal) e resolvi compartilhar alguns poemas interessantes desse taciturno poeta francês, na tradução de Pietro Nassetti.
Que os séculos o lembrem, gênio obscuro.

Link para baixar o livro, em português, AQUI.

ABEL E CAIM

I

Raça de Abel, só bebe e come,
Deus te sorri tão complacente.

Raça de Caim, sempre some
No lodo miseravelmente.

Raça de Abel, teu sacrifício
Doce é ao nariz do Serafim!

Raça de Caim, teu suplício
Será que jamais terá fim?

Raça de Abel, tuas sementes
E teu gado produzirão;

Raça de Caim, sempre sentes
Uivar-te a fome como um cão.

Raça de Abel, não tremas nunca
À lareira patriarcal;

Raça de Caim, na espelunca,
Treme de frio, atroz chacal!

Raça de Abel, pulula! Ama!
Teu oiro é sempre gerador.

Raça de Caim, alma em flama,
Cuidado com o teu amor.

Raça de Abel multiplicada
Como a legião dos percevejos!

Raça de Caim, pela estrada
Arrasta a família aos arquejos.

II

Raça de Abel apodrecida
Há de adubar o solo ardente!

Raça de Caim, tua lida
Nunca te será suficiente;

Raça de Abel, eis teu labéu:
Do ferro o chuço é vencedor!

Raça de Caim, sobe ao céu
E arremessa à terra o Senhor!

 MUSA DOENTE

O que tens essa manhã, ó musa de ar magoado?
Teus olhos estão cheios de visões noturnas,
E vejo que em teu rosto afloram lado a lado
A loucura e a aflição, frias e taciturnas.

Teria o duende róseo ou o súcubo esverdeado
Te ungido com o medo e o mel de suas urnas?
O sonho mau, de um punho déspota e obcecado,
Nas águas te afogou de um mítico Minturnas ?

Quisera eu que, vertendo o odor da exuberância,
O pensamento fosse em ti uma constância
E que o sangue cristão te fluísse na cadência

Das velhas sílabas de uníssona freqüência,
Quando reinavam Febo, o criador das cantigas,
E o grande Pã, senhor do campo e das espigas.

O ARCHOTE VIVO

Diante de mim caminham olhos luminosos,
Que um Anjo sábio fez sem dúvida imantados;
São meus irmãos, eu sei, estes irmãos piedosos,
Que aos olhos me arrojam fogos constelados.

Salvando-me do risco ou de qualquer agravo,
Rumo à Beleza eles me guiam sempre altivo;
Meus servos são e deles sou também escravo;
Todo meu ser se roja ante este archote vivo.

Olhos graciosos, cintilais da luz que emana
Dos círios místicos a arder no dia a pino;
O sol não lhes extingue a misteriosa chama;

Eles louvam a Morte, e vós entoais um Hino;
Ides a celebrar de minha alma o arrebol,
Astros cuja luz nunca há de apagar o sol!

SEPULTURA

Se em lúgubre noite de assombro
Um bom cristão, por caridade,
Sepulta ao pé de um velho escombro
Teu corpo inflado de vaidade,

À hora em que as estrelas graves
Fecham seus olhos sonolentos,
A aranha urdirá suas caves,
Como a serpente seus rebentos;

Ouvirás cada ano que passa
Ecoar no teu crânio em desgraça
O uivo dos lobos carniceiros

E das ferozes bruxas hiantes,
A esbórnia das velhas bacantes
E o vil complô dos trapaceiros.

O MORTO ALEGRE

Na planície em que o lento caracol vagueia,
Quero eu mesmo cavar um buraco bem fundo,
Onde possam meus ossos repousar na areia,
Como a esqualo a dormir no pélago profundo.

Odeio o testamento e a tumba me nauseia;
Ao invés de implorar uma lágrima ao mundo,
Prefiro em vida dar aos corvos como ceia
Os trapos que me pendem do esqueleto imundo.

Ó vermes! Vós a que não chegam luz ou ruído,
Eis que vos toca um morto alegre e destemido;
Filhos da podridão, demiurgos do artifício,

Vinde pois sem remorso ungir-me os membros tortos,
E dizei-me depois se resta algum suplício
A este corpo sem alma e morto dentre os mortos!

PAISAGEM

Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me junto ao céu, à moda dos astrólogos,
E, vizinho do sino, escutar cismarento,
Os seus hinos marciais, levados pelo vento.
As mãos postas no queixo, eu do alto da mansarda,
Hei de ver a oficina a cantar na hora parda;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
Grandes céus a fazer sonhar a eternidade.

É sempre doce ver que à tarde a bruma vela
A estrela pelo azul e a lâmpada à janela,
Os rios de carvão irem ao firmamento,
Como a Lua, verter seu frouxo encantamento.
Eu hei de ver a primavera, o outono e o estio;
E quando o inverno vier, monótono em seu frio,
Por tudo fecharei cortinas e portões
Para construir na noite as feéricas mansões.

Sonharei com o poente azul e com seus astros,
Repuxos no jardim chorando entre alabastros,
Beijos como canções desde a manhã à tarde,
Tudo o que de infantil o Idílio ainda guarde.
O Alvoroço lá fora em tempestade cresça
Mas eu nunca erguerei da carteira a cabeça;
Mergulhado serei nesta sensualidade
Do mês de abril chamar só com minha vontade,
De um sol todo extrair de minha alma, que espera
Mudar meu peito ardente em tépida atmosfera.

A ALMA DO VINHO

Cantava a alma do vinho à tarde nas botelhas:
"Homem, eu ergo a ti, que és deserdado e triste,
De minha prisão vítrea e de ceras vermelhas,
Um canto fraternal que só de luz consiste!

Sei de quanto precisa a colina acendida
De amargura, de suor e do sol mais ardente
Para que esta alma seja e que eu palpite em vida;
Mas eu nunca serei ingrato ou inclemente,

Sempre sinto prazer imenso quando desço
Uma garganta humana usada de refregas,
Sempre um cálido peito é um sepulcro sem preço
Em que eu vivo melhor que nas frias adegas.

Ouves dominicais refrões bem como a Graça
Da esperança que vibra em meu seio fremente?
Apóia as mãos à mesa, as mangas arregaça,
Glorifica-me após e serás mais contente.

Acenderei o olhar de tua bem-querida;
Ao teu filho darei os músculos e as cores,
Serei para este fraco atleta desta vida
Óleo a robustecer bíceps de lutadores.

Eu tombarei em ti, vegetal ambrósia,
Precioso grão que atira o eterno Semeador,
Para que nosso amor desemprenhe a Poesia,
Brotando para Deus como uma rara flor!"

HINO

À bem-amada, à sem-igual,
À que me banha em claridade,
Ao anjo, ao ídolo imortal,
Saúdo na imortalidade!

Ela se expande em minha vida
Como ar impregnado de sal,
E na minha alma ressequida
Verte o sabor do que é imortal.

Bálsamo fresco que inebria
O ar de uma sagrada redoma,
Pira esquecida que irradia
Na noite o seu secreto aroma,

Como, ó amor incorruptível,
Posso expressar-te com verdade?
Um grão de almíscar invisível
A germinar na eternidade!

À bem-amada, à sem-igual,
Que me dá paz, felicidade,
Ao anjo, ao ídolo imortal,
Saúdo na imortalidade!


5 comentários:

M. Lodgard disse...

grande post brother, e essa é uma das fotos clássicas de carjat, que ensaiou o mestre baudelaire em sephia e outros efeitos ainda na descoloração por base química sabia?,

Sigthor disse...

Bom saber. É um efeito incrível em fotos.

Anônimo disse...

Eddas traduzidas para o português:

http://www.4shared.com/dir/9612622/1000126a/sharing.html

Mauro Sanches disse...

Bom post! Baudelaire é genial, véio!

Nietzschean Hammer disse...

Excelente!grande Poeta...

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